Ex-Constituinte de 1988 denuncia espetacularização judicial e perseguição a Ricardo Coutinho
A busca do espetáculo e a (in)
compreensão do direito: sobre acusados e tornozeleiras
Agassiz Almeida (*)
O ativismo judicial consiste,
basicamente, na construção de decisões que não possuem respaldo no Direito e
substituem as normas jurídicas pelo modo de pensar do magistrado
Artigo publicado no site
Brasil 247, em 25/2/2020.
A compreensão do Direito não
vive seus melhores dias. Os livros foram substituídos pelos vídeos, os resumos
tomaram o lugar dos compêndios e o ensino jurídico converteu-se em mera
estratégia para a aprovação em concursos públicos. A generalização da
mediocridade na carreira jurídica começa nos bancos acadêmicos. Porém, também
ocupa lugar de destaque entre magistrados, advogados, promotores e outros
profissionais do Direito. Esse fenômeno não é de hoje. Remonta ao início dos
anos 1990. E talvez o maior símbolo dessa situação de verdadeira calamidade
jurídica seja o voluntarismo ou ativismo judicial.
O ativismo judicial consiste,
basicamente, na construção de decisões que não possuem respaldo no Direito e
substituem as normas jurídicas pelo modo de pensar do magistrado. Aqui a
personagem principal é o juiz que decide de acordo com a sua própria vontade. E
qual é o problema desse tipo de decisão? O ativismo judicial contraria o Estado
Democrático de Direito porque ele subverte, entre outros aspectos, a ideia
clássica de que o governo das leis (ordem jurídica) é superior ao governo dos
homens (vontade dos juízes). E os gregos antigos optaram pelo governo das leis
porque observaram que a vontade dos homens não era confiável.
O ativismo judicial é um
símbolo da mediocridade na carreira jurídica porque aqueles que fazem uso dele
agem de má-fé ou não conhecem o sentido do Direito. Os que atuam de má-fé são
medíocres porque apequenam o exercício da magistratura, agindo como
legisladores sem representação popular ou como políticos de toga. Os que não
conhecem o sentido do Direito, por sua vez, simbolizam a mediocridade pelo fato
de serem incapazes de entender o seu próprio papel no momento histórico em que
a decisão é tomada. Ambos os tipos de magistrados engrossam as fileiras dos
profissionais do Direito que buscam ou aplaudem o espetáculo como forma de
manifestação da Justiça Criminal.
A busca do espetáculo na
persecução penal envolve má-fé ou falta de compreensão do Direito. A
espetacularização é um artifício que procura trazer a opinião pública para
dentro da investigação ou do processo. Consiste em criminalizar os imputados
com o fim de condená-los moralmente e convertê-los em culpados, ainda que isso
ocorra à margem da lei e da Constituição. Trata-se de verdadeira “pirataria
jurídica”, pois pretende substituir as provas e as garantias constitucionais
pela pressão de determinados setores sociais. Em 04 de agosto de 2019, o
ministro Gilmar Mendes, do STF, chegou a afirmar que a Operação Lava Jato –
principal exemplo de utilização do espetáculo na persecução penal – era “uma
organização criminosa para investigar pessoas”.
“O jurista pertence a uma
dimensão de civilização, e civilização significa história, um contexto
histórico determinado em toda a riqueza de suas expressões” (Paolo Grossi). O
espetáculo como forma de legitimar o julgamento dos acusados remonta ao período
dos suplícios e das queimas de bruxas. Mesmo assim, apesar de o Direito atual
girar em torno dos direitos fundamentais, a utilização do espetáculo foi
retomada como método prático (ilegal) de investigação e aplicação da lei penal.
Essa espetacularização do processo ocorre por meio de entrevistas coletivas, de
convocações da imprensa para presenciar prisões, de vazamentos seletivos e
mesmo por meio do modo como as decisões judiciais são escritas.
Nas decisões e pedidos em que
há o interesse de cooptar a opinião pública, é comum encontrar uma estrutura
discursiva elaborada para fins exclusivamente midiáticos. No início das
decisões, sobretudo quando elas envolvem o setor do Ministério Público que
investiga o crime organizado (GAECO), há uma exposição preliminar que distribui
a suposta responsabilidade criminal em grupos: núcleo empresarial, núcleo
econômico etc. Esta é praticamente a única parte do texto divulgada pela
imprensa e lida pelo público. Sem outros elementos, os imputados são condenados
de antemão pela opinião pública, para a qual as provas, a Constituição ou a
imparcialidade do juiz são irrelevantes. O espetáculo é necessário?
O espetáculo é indispensável
para que determinados setores da persecução penal possam alcançar objetivos
(interferência eleitoral, promoção pessoal, condenações sem provas etc.) que
não seriam possíveis sem o apoio da imprensa e da opinião pública. É uma
necessidade dos porões dos órgãos de persecução penal. Foi a espetacularização
do processo que permitiu a condenação do ex-presidente Lula, um episódio que
desafia o Direito porque significa a própria negação do jurídico por parte do
Poder Judiciário e do Ministério Público. Quando o ministro Gilmar Mendes acusa
a Lava Jato de ser uma organização criminosa, ele se refere ao paradoxo de se
utilizar métodos ilegais com a justificativa de investigar condutas ilegais.
Os mecanismos de
espetacularização são variados. A determinação do uso de uma tornozeleira eletrônica
pode servir a esses propósitos de negação do Direito e dos direitos
fundamentais. O caso da imposição do uso da tornozeleira para o ex-governador
da Paraíba pela Operação Calvário é um claro exemplo de busca do espetáculo.
Sua justificativa é monitorar as medidas que restringem a liberdade de ir e vir
do ex-governador Ricardo Coutinho. Quais são elas? O recolhimento domiciliar em
determinados horários ou dias e a proibição de se ausentar da comarca.
No caso do ex-governador, que
é uma figura pública, o fundamento que justifica o uso da tornozeleira afronta
a razoabilidade, pois, se Ricardo Coutinho descumprisse as medidas restritivas,
o fato se tornaria público quase que imediatamente. Como a imposição da
tornozeleira não é juridicamente necessária, parece que seu propósito é apenas
“preservar a temperatura do caso”. O objetivo do processo como espetáculo é
manter segmentos da opinião pública mobilizados em torno da operação ou do
processo com a finalidade de assegurar o que as provas não conseguem
demonstrar. A persecução penal do espetáculo age contra o Direito e as
instituições democráticas.
A incompreensão do Direito e o
desconhecimento do modo como os magistrados devem julgar (metodologia jurídica)
respaldam várias decisões desse tipo. Se quisermos evitar os justiceiros, o
ativismo judicial e a busca do espetáculo, é preciso regressar a 88 e procurar
entender a mensagem normativa da Constituição. Também é fundamental voltar à
Filosofia Jurídica, à Teoria do Direito e aos livros. A boa doutrina jurídica
ainda é a base para a construção do Direito apropriado para cada momento e cada
caso. Se houver caminho de volta para a nossa geração, o papel da academia é
central no resgate da ordem jurídica e no restabelecimento do Estado
Democrático de Direito. Precisamos de uma revolução no modo de compreender e
aplicar o Direito.
(*) Agassiz Almeida foi
constituinte em 88 e um dos principais artífices do fortalecimento do
Ministério Público na Constituição. Recebeu a máxima comenda da Associação
Nacional do Ministério Público pelos relevantes serviços prestados ao MP. É
escritor brasileiro e ativista dos direitos humanos
Informações:
Julio Moreira
ExLibris Comunicação Integrada
11 986989003
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